sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Caindo fora

Estava atendendo a um paciente, dia desses. Ele me falava sobre a angústia que experimentava todos os dias pela manhã, quando acordava e pensava em ter que ir trabalhar. Não agüentava mais seu emprego. Não tolerava mais sua empresa. Não suportava mais seu chefe. Acordar, todos os dias, fazer sempre o mesmo trajeto rumo ao trabalho, vestir sempre o mesmo uniforme, encontrar sempre as mesmas pessoas, vender sempre o mesmo produto; tudo isso havia se tornado seu maior sofrimento. Acabava descontando na comida, devorando tudo o que via pela frente; vinha sendo rude com a esposa, agressivo com os amigos. Sua pressão, que já não era das melhores, vivia nas alturas. Seu sono era agitado, repleto de pesadelos e de imagens desagradáveis. Os finais de semana, de momentos de prazer, haviam se transformado em prenúncios de sofrimentos, uma mórbida contagem regressiva para o reinício de uma sempre igual e intolerável semana... E ele me questionava: “Doutora, qual é o momento certo de cair fora?”.

Muitas vezes nos deparamos com situações como essa; seja no trabalho, quando não mais nos sentimos motivados a dar o sangue por um ideal que já não nos representa mais nada; seja em uma discussão, quando percebemos que por mais que tentemos, não conseguiremos fazer com que o outro se convença de nosso ponto de vista; seja em um jogo de azar, quando percebemos que estamos arriscando mais do que podemos ganhar. E isso também pode acontecer – e acontece muitas vezes – na vida pessoal. Como saber o momento certo de romper uma amizade? Ou de cair fora de um relacionamento amoroso? Como identificar aquele momento em que contamos com dados suficientes para podermos nos sentir aptos a tomar uma decisão? Como saber ao certo que momento é este, momento crucial em que exercitamos nosso livre arbítrio, em que optamos por uma coisa, e o preço a se pagar é a perda de outra?

Tomar decisões é sempre muito difícil. E a dificuldade decorre da inevitabilidade de que, ao optarmos por um caminho, abrimos mão de todos os outros. E perder é sempre muito difícil. Para os antigos e sábios povos Celtas as encruzilhadas eram locais sagrados. Isso porque as encruzilhadas representavam ocasiões em que o livre-arbítrio poderia ser exercitado. Poder escolher seu caminho, escolher seu rumo, tudo isso era sagrado, manifestações do poder da vontade, do desejo. Ao escolher um caminho, automaticamente se desprezava um outro. Os antropólogos dizem que é justamente por esta virtude que as encruzilhadas são os locais escolhidos para a realização de “trabalhos mágicos”, vulgarmente conhecidos como macumbas. Pois estes lugares são marcados por grandes concentrações de energia.

Realmente optar pela perda – de um trabalho, de uma amizade, de um relacionamento amoroso – é uma decisão que deve ser muito bem pensada e elaborada, pois muitas vezes acarreta uma impossibilidade de voltar atrás. Mas a perda envolvida no assunto não deve ser o que vem a impedir a tomada de atitude. Em muitas ocasiões, não tomamos atitudes como essa por acomodação. No caso do meu paciente, ele tinha muito medo de se ver em uma situação de insegurança. Começar em um trabalho novo, no qual não conheceria as pessoas, no qual seria um “corpo estranho”, recém-colocado. Será que se relacionaria bem com os novos colegas? Será que contaria com a liberdade que tinha antes com seu antigo chefe? Será que o retorno financeiro seria bom? Na verdade era o medo do novo que o impedia de tomar a decisão.

Tenho uma amiga que demorou um ano para terminar um relacionamento de três anos e meio. Outra ficou quase cinco anos com o mesmo cara, dos quais dois agonizou uma dúvida sem fim sobre se deveria ou não continuar namorando. Eu mesma creio ter esperado muito tempo para terminar alguns relacionamentos, temerosa do grande ponto de interrogação que representava o novo. Muitas vezes é apenas o medo de uma situação nova que nos mantém presos a uma antiga que não está mais nos fazendo bem. É paradoxal, mas por mais que desejemos que uma mudança ocorra, é justamente por medo desta mudança que não tomamos uma atitude que ponha fim ao nosso sofrimento.

É natural temer aquilo que não se conhece. Toda situação nova é causadora de estresse, já me disse meu pai, um apaixonado pela psicologia evolutiva. Para nos livrarmos da ansiedade, nosso sistema nervoso está acostumado, fruto de anos e anos de evolução, a se livrar de toda e qualquer situação causadora de estresse. É por isso que temos a tendência – pelo menos a grande maioria de nós – a rejeitar, no início, qualquer situação que represente novidade, que simbolize a insegurança e o não–saber. É por isso que, muitas vezes, esperamos que a situação se torne insustentável, insuportável e intolerável para que tomemos, enfim, uma atitude.

Só que, em se tratando de relações humanas, isso representa um grande perigo. É como se, enquanto esperamos o momento certo de agir, fôssemos espremendo um limão. Agüentamos a angústia e a incerteza do que fazer enquanto alguma gota de suco ainda puder ser extraída. Quando não há mais nada senão o bagaço, colocamos um fim à situação ansiógena. Do limão, só resta o bagaço. E o que se faz com um bagaço de limão? Joga-se fora. O que mais pode-se fazer com um bagaço, que já não serve mais para nada?

E transpondo-se isso para o mundo das relações humanas... Será que por uma relação não ter dado certo, o melhor a se fazer é simplesmente jogá-la fora? Será que se formos capazes de cair fora no momento certo, não estaremos abrindo assim a possibilidade de existir uma nova categoria de relações? Em que as pessoas não se transformam em bagaços, mas continuam sendo pessoas, que simplesmente não atendem mais às exigências para se encontrarem em uma categoria, mas que talvez se enquadrem em uma outra? Sem mágoas, sem ressentimentos, sem rancores ou decepções; durou enquanto durou, foi bom enquanto foi bom, e ponto?

O que faz com que eu me volte à pergunta do meu paciente... Qual o momento certo de cair fora? O momento certo para cair fora é aquele em que você é capaz de reconhecer que o que o impede de tomar a decisão desejada é o medo do novo. É quando você sabe – de alguma forma inconsciente, não importa – que nada mais pode fazer com que você receba aquilo que deseja ou necessita. É aquele momento em que você é obrigado a admitir que, se permanecer na situação em que se encontra, estará sendo conivente com uma situação que existe, com a qual não está satisfeito, e para a qual não dispõe de coragem para modificar. Afinal de contas, não tomar decisões, não escolher, também é uma forma de escolha, cujas conseqüências virão e com as quais você terá de se haver. Sentir medo, receio, insegurança, tudo isso é permitido. O que não pode e não deve ser permitido nunca é que uma pessoa não se abra para o novo, para mudanças vindouras que podem ser maravilhosas por apego a uma situação que não a satisfaz. É o que faz da encruzilhada um local mágico e sagrado... E é o que faz com que você perceba que as rédeas de sua vida estão – e estarão sempre, se você o permitir – nas suas mãos.

Como diz um ditado popular – que como todos é de uma sabedoria única – se você continuar a agir como vem agindo, vai continuar a obter o que vem obtendo. Quando se der conta disso, e de que o futuro é sempre um ponto de interrogação, que por mais que tente nunca vai ser capaz de controlar situação alguma, e que, por isso, quando pode agir no sentido de ocasionar uma mudança em uma situação que não lhe agrada, deve, sim, agir... Este é o momento certo. Independentemente das conseqüências fazerem ou não com que você sofra. Esta será, na verdade, uma verdadeira demonstração de amor e respeito por si mesmo.
Março de 2005