sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Caindo fora

Estava atendendo a um paciente, dia desses. Ele me falava sobre a angústia que experimentava todos os dias pela manhã, quando acordava e pensava em ter que ir trabalhar. Não agüentava mais seu emprego. Não tolerava mais sua empresa. Não suportava mais seu chefe. Acordar, todos os dias, fazer sempre o mesmo trajeto rumo ao trabalho, vestir sempre o mesmo uniforme, encontrar sempre as mesmas pessoas, vender sempre o mesmo produto; tudo isso havia se tornado seu maior sofrimento. Acabava descontando na comida, devorando tudo o que via pela frente; vinha sendo rude com a esposa, agressivo com os amigos. Sua pressão, que já não era das melhores, vivia nas alturas. Seu sono era agitado, repleto de pesadelos e de imagens desagradáveis. Os finais de semana, de momentos de prazer, haviam se transformado em prenúncios de sofrimentos, uma mórbida contagem regressiva para o reinício de uma sempre igual e intolerável semana... E ele me questionava: “Doutora, qual é o momento certo de cair fora?”.

Muitas vezes nos deparamos com situações como essa; seja no trabalho, quando não mais nos sentimos motivados a dar o sangue por um ideal que já não nos representa mais nada; seja em uma discussão, quando percebemos que por mais que tentemos, não conseguiremos fazer com que o outro se convença de nosso ponto de vista; seja em um jogo de azar, quando percebemos que estamos arriscando mais do que podemos ganhar. E isso também pode acontecer – e acontece muitas vezes – na vida pessoal. Como saber o momento certo de romper uma amizade? Ou de cair fora de um relacionamento amoroso? Como identificar aquele momento em que contamos com dados suficientes para podermos nos sentir aptos a tomar uma decisão? Como saber ao certo que momento é este, momento crucial em que exercitamos nosso livre arbítrio, em que optamos por uma coisa, e o preço a se pagar é a perda de outra?

Tomar decisões é sempre muito difícil. E a dificuldade decorre da inevitabilidade de que, ao optarmos por um caminho, abrimos mão de todos os outros. E perder é sempre muito difícil. Para os antigos e sábios povos Celtas as encruzilhadas eram locais sagrados. Isso porque as encruzilhadas representavam ocasiões em que o livre-arbítrio poderia ser exercitado. Poder escolher seu caminho, escolher seu rumo, tudo isso era sagrado, manifestações do poder da vontade, do desejo. Ao escolher um caminho, automaticamente se desprezava um outro. Os antropólogos dizem que é justamente por esta virtude que as encruzilhadas são os locais escolhidos para a realização de “trabalhos mágicos”, vulgarmente conhecidos como macumbas. Pois estes lugares são marcados por grandes concentrações de energia.

Realmente optar pela perda – de um trabalho, de uma amizade, de um relacionamento amoroso – é uma decisão que deve ser muito bem pensada e elaborada, pois muitas vezes acarreta uma impossibilidade de voltar atrás. Mas a perda envolvida no assunto não deve ser o que vem a impedir a tomada de atitude. Em muitas ocasiões, não tomamos atitudes como essa por acomodação. No caso do meu paciente, ele tinha muito medo de se ver em uma situação de insegurança. Começar em um trabalho novo, no qual não conheceria as pessoas, no qual seria um “corpo estranho”, recém-colocado. Será que se relacionaria bem com os novos colegas? Será que contaria com a liberdade que tinha antes com seu antigo chefe? Será que o retorno financeiro seria bom? Na verdade era o medo do novo que o impedia de tomar a decisão.

Tenho uma amiga que demorou um ano para terminar um relacionamento de três anos e meio. Outra ficou quase cinco anos com o mesmo cara, dos quais dois agonizou uma dúvida sem fim sobre se deveria ou não continuar namorando. Eu mesma creio ter esperado muito tempo para terminar alguns relacionamentos, temerosa do grande ponto de interrogação que representava o novo. Muitas vezes é apenas o medo de uma situação nova que nos mantém presos a uma antiga que não está mais nos fazendo bem. É paradoxal, mas por mais que desejemos que uma mudança ocorra, é justamente por medo desta mudança que não tomamos uma atitude que ponha fim ao nosso sofrimento.

É natural temer aquilo que não se conhece. Toda situação nova é causadora de estresse, já me disse meu pai, um apaixonado pela psicologia evolutiva. Para nos livrarmos da ansiedade, nosso sistema nervoso está acostumado, fruto de anos e anos de evolução, a se livrar de toda e qualquer situação causadora de estresse. É por isso que temos a tendência – pelo menos a grande maioria de nós – a rejeitar, no início, qualquer situação que represente novidade, que simbolize a insegurança e o não–saber. É por isso que, muitas vezes, esperamos que a situação se torne insustentável, insuportável e intolerável para que tomemos, enfim, uma atitude.

Só que, em se tratando de relações humanas, isso representa um grande perigo. É como se, enquanto esperamos o momento certo de agir, fôssemos espremendo um limão. Agüentamos a angústia e a incerteza do que fazer enquanto alguma gota de suco ainda puder ser extraída. Quando não há mais nada senão o bagaço, colocamos um fim à situação ansiógena. Do limão, só resta o bagaço. E o que se faz com um bagaço de limão? Joga-se fora. O que mais pode-se fazer com um bagaço, que já não serve mais para nada?

E transpondo-se isso para o mundo das relações humanas... Será que por uma relação não ter dado certo, o melhor a se fazer é simplesmente jogá-la fora? Será que se formos capazes de cair fora no momento certo, não estaremos abrindo assim a possibilidade de existir uma nova categoria de relações? Em que as pessoas não se transformam em bagaços, mas continuam sendo pessoas, que simplesmente não atendem mais às exigências para se encontrarem em uma categoria, mas que talvez se enquadrem em uma outra? Sem mágoas, sem ressentimentos, sem rancores ou decepções; durou enquanto durou, foi bom enquanto foi bom, e ponto?

O que faz com que eu me volte à pergunta do meu paciente... Qual o momento certo de cair fora? O momento certo para cair fora é aquele em que você é capaz de reconhecer que o que o impede de tomar a decisão desejada é o medo do novo. É quando você sabe – de alguma forma inconsciente, não importa – que nada mais pode fazer com que você receba aquilo que deseja ou necessita. É aquele momento em que você é obrigado a admitir que, se permanecer na situação em que se encontra, estará sendo conivente com uma situação que existe, com a qual não está satisfeito, e para a qual não dispõe de coragem para modificar. Afinal de contas, não tomar decisões, não escolher, também é uma forma de escolha, cujas conseqüências virão e com as quais você terá de se haver. Sentir medo, receio, insegurança, tudo isso é permitido. O que não pode e não deve ser permitido nunca é que uma pessoa não se abra para o novo, para mudanças vindouras que podem ser maravilhosas por apego a uma situação que não a satisfaz. É o que faz da encruzilhada um local mágico e sagrado... E é o que faz com que você perceba que as rédeas de sua vida estão – e estarão sempre, se você o permitir – nas suas mãos.

Como diz um ditado popular – que como todos é de uma sabedoria única – se você continuar a agir como vem agindo, vai continuar a obter o que vem obtendo. Quando se der conta disso, e de que o futuro é sempre um ponto de interrogação, que por mais que tente nunca vai ser capaz de controlar situação alguma, e que, por isso, quando pode agir no sentido de ocasionar uma mudança em uma situação que não lhe agrada, deve, sim, agir... Este é o momento certo. Independentemente das conseqüências fazerem ou não com que você sofra. Esta será, na verdade, uma verdadeira demonstração de amor e respeito por si mesmo.
Março de 2005

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Os Homens Jogam WAR

Conversando com uma amiga no telefone, e ela me conta que leu em algum lugar que os homens vivenciam a vida amorosa como se fosse um jogo de War. Lembra daquele jogo, que você provavelmente jogou em alguma noite chuvosa na praia, com os amigos? Aquele que tem umas pecinhas redondas e coloridas, você escolhe uma cor e tem o objetivo, de conquistar, por exemplo, a América do Norte, a África e mais um continente à sua escolha?

Pois bem, o objetivo do jogo é ir amontoando as pecinhas em volta dos territórios a serem conquistados, até que o ataque é decidido em um lance de dados. Quanto mais pecinhas o adversário tiver, maior a chance dele conquistar o território. Aí, se este ganha nos dados, o vencido é obrigado a tirar suas pecinhas do território e guardá-las na caixinha, enquanto o vencedor passa as suas para o território conquistado, para, nas jogadas seguintes, usá-las em nova disputa de dados e conquistar mais e mais territórios.
A moral da história era: assim que o cara te conquista, ele põe uma bandeirinha encima da sua cabeça, tipo, essa já é minha, território conquistado; larga a bandeirinha ali e parte para a próxima conquista. O propósito do tema era: devemos nós mulheres, aprender a jogar War também!! E aí eu fiquei pensando... será que somos estrategistas boas o suficiente para sequer entramos na disputa por uma conquista?

Qualquer pessoa mais observadora pode conferir que as mulheres são muito melhores jogadoras de tranca do que os homens. E que eles jogam truco bem melhor do que nós. Se você não conferiu, pode observar bem. E porquê isso acontece? No truco, o blefe é indispensável. E nós mulheres – pelo menos a grande maioria de nós – somos muito mais cautelosas; arrisque a comprar a mesa na tranca em momento errado e o que você terá em troca será descontar centenas de pontos pelos três pretos que perder na mão.

Lembro-me de uma aula de psicanálise na qual o professor estabeleceu uma comparação muito interessante entre a forma de viver o amor e as relações afetivas de homens e mulheres e o ato de urinar dos mesmos na infância. O menininho apostava com os amigos quem fazia xixi mais longe, quem acertava tal alvo a tantos metros de distância. Enquanto isso, a menininha fazia xixi agachada e mesmo assim se molhava. Na vida amorosa, o homem aponta seu piu-piu lá longe enquanto a mulher sente na pele as conseqüências do envolvimento – como o xixi a molhava, as emoções a inundam...

Reclamamos dos homens que usam de toda a sua lábia só para nos levar para a cama e desaparecer no dia seguinte... Mas se não existissem mulheres que se prestam a isso, eles não agiriam desta forma. Precisamos nos questionar se não estamos sendo permissivas em relação aos homens, porque quando um não quer dois não fazem. Parece que depois de toda a luta por direitos iguais, a mulher continua em uma realidade que não é a sua, tentando jogar um jogo cujas regras não são iguais para homens e mulheres, por mais que se queimem sutiãs em praça pública – o que, aparentemente, só serviu para que o peito caísse.

Observe um pêndulo; procure segurá-lo em um extremo. Ao soltar, perceberá que ele imediatamente irá para o extremo oposto. Parece ser isso exatamente o que vem acontecendo. A mulher lutou por direitos iguais, no trabalho, na sociedade, na política e na cama. E agora não consegue administrar as conseqüências disso. Insistimos em fingir que não estamos nem aí se o cara não liga no dia seguinte. Fingimos achar natural que o cara saia com mais duas além de nós. Fingimos estarmos satisfeitas com o prazer que tivemos na noite anterior, se ele por acaso desaparecer. Fingimos estar satisfeitas com as novas regras do jogo, sem perceber que mal sabemos elas quais são.

Não sugiro que as mulheres joguem apenas tranca enquanto os homens jogam truco. Que joguemos War juntos, contanto que cada um – homens e mulheres – saibam utilizar as melhores estratégias. Se a habilidade natural deles é a de conquistar, exercitemos adequadamente a nossa – a de seduzir. E quando falo em sedução, não quero dizer: “mulheres, pintem a unhas de vermelho, o cabelo de loiro e dêem uma piscadinha para todos!”. Falo de assumirmos nosso papel de mulher, de nos orgulharmos de nossa incrível capacidade de amar, de nos envolvermos... Isso é notável nos dias de hoje, em que tudo é tão descartável... Temos, em nosso corpo, a capacidade de gerar e dar à luz a uma nova vida... É assim que a honramos? Sendo permissivas com crápulas aborígenes cujo objetivo é simplesmente colocar-nos uma pecinha redonda sobre a cabeça?

Façamos o seguinte: deixemos que escolham as peças azuis, peguemos as rosas. Escolhamos então os territórios valiosos e reforcemos assim nossas defesas nas fronteiras com os territórios inimigos. Isso dificultará a batalha, dificultará que sejamos vencidas. Pois, me parece, jogar os dados é sempre mais excitante... E além disso, para quem não se lembra... quem está sendo atacado conta com dois fatores a seu favor: a sorte e a vantagem... No empate, ganhemos.
Março de 2005

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Pessoas Fortes

Ultimamente venho pensando sobre o que é determinante para que uma pessoa seja forte; não aquele tipo de força que se obtém malhando feito loucos na academia e tomando suplementação vitamínica. Mas aquela força de vem de dentro, que permite que a pessoa atravesse as mais difíceis situações sem se abalar – ou sem se abalar em demasia.
Conheço algumas pessoas que são assim. Pessoas que não tem uma vida perfeita, que não contam com uma ausência total de problemas. Pessoas que vivem às voltas com questões normais: dificuldades financeiras, problemas familiares, descontentamentos com o peso e a forma física, dificuldades profissionais e pessoais. São pessoas com as mais diversas características individuais, com histórias de vida e experiências pessoais diferentes. Mas têm em comum a característica de não esmorecer facilmente diante das dificuldades, não se desesperam com qualquer coisa e, além disso, parecem sempre conseguir encontrar algo de positivo em tudo o que lhes acontece.
Tenho observado a forma-conduta de algumas destas pessoas nas mais variadas situações, e fui capaz de chegar à algumas conclusões. Não posso afirmar com certeza de que possuir ou não tais características seja determinante para que as pessoas sejam ou não felizes, mas o bom senso me diz que a vida pode ser muita mais fácil e prazerosamente vivida a partir do momento em que adotamos posicionamentos diferentes em relação às coisas. Problemas sempre existiram e sempre vão existir; o segredo me parece ser, portanto, a maneira com que lidamos com eles. O referencial pelo qual somos capazes de enxergar as diferentes situações que nos acontecem.
Pessoas fortes são pessoas incrivelmente assertivas. Não adotam uma postura passiva, e nem tampouco agressiva diante dos fatos. Quando algo lhes incomoda, não engolem o sapo, mas são capazes de externalizar o que estão sentindo sem agredir a outras pessoas. São pessoas que se encontram altamente em contato com seus sentimentos, não desprezam suas emoções e não as consideram coisas “erradas” ou “corretas”. Reconhecem seus sentimentos, suas frustrações, suas limitações e as expressam ao mundo sem causar mágoa ou dano à ninguém.
Além disso, pessoas fortes não sofrem, na medida do possível, por antecipação. São serenas o suficiente para esperar que os problemas ocorram antes de estes lhes causarem sofrimento. Avaliam a possibilidade de uma determinada coisa ocorrer, mas apenas se preocupam com esta coisa a partir do momento em que ela de fato se apresenta.
Pessoas fortes têm uma visão otimista diante da vida. “Se algo pode dar certo, porque daria errado?”, parece ser o pensamento mais comum destas pessoas. E quando algo dá errado, assumem o problema mais uma vez de forma positiva; “ok, o pior aconteceu, mas a única coisa para a qual não há solução é a morte” parece ser seu segundo pensamento mais comum. E se, por fim, não forem capazes de resolver a situação como queriam a princípio, “fiz tudo o que pude, e se ainda assim não fui capaz de resolver isso, paciência, tinha de ser assim” parece ser seu pensamento final.
As pessoas que são fortes não exigem demais de si mesmas. Esta parece ser uma conseqüência daquela outra característica, a de estar sempre em contato com suas capacidades, dificuldades e limitações. Sabem o limite exato de sua força e da sua fraqueza, e parecem não se expor à situações em que tenham que ultrapassar estes limites à toa. Sabem para qual tipo de plantio seu solo é fértil. Lembro-me de uma amiga minha que, quando algo estava além de sua capacidade, afirmava, tranqüilamente: “Esta situação não é para mim. Não adianta querer que focinho de porco vire tomada pois não vai virar nunca”.
Pessoas fortes são absolutamente espontâneas; e por conseqüência, criativas. São pessoas que não ficam exigindo de si mesmas que se comportem de X ou Y maneira, se estas não forem suas formas autênticas de se agir. Não ligam muito para a opinião dos outros; se importam na medida certa com o que as pessoas vão pensar delas. E se não gostarem, paciência. Têm a consciência de que não pode-se sempre agradar a gregos e a troianos. Um amigo me diz sempre que, se em um grupo de dez pessoas houver apenas uma que goste verdadeiramente de você, já está ótimo. Pois é muito melhor ser você mesmo sempre e agradar verdadeiramente a apenas uma pessoa do que se esforçar para ser aquilo que não se é para satisfazer a dez.
Além disso, pessoas fortes estabelecem objetivos palpáveis a curto prazo. Preferem colher a cada dia um único fruto, pois parecem ter a consciência de que desta forma saboreia-se muito mais aquilo que foi colhido. Uma cesta cheia de frutos de uma vez parece tirar a capacidade de degustação dessas pessoas, que saboreiam a vitória aos poucos. Não atormentam-se com objetivos impossíveis de serem atingidos; objetivos mais modestos mas que podem ser alcançados impedem com que estas pessoas armem arapucas para si mesmas.
Pessoas fortes têm em comum a característica de manter suas amizades. Possuem poucos, mas bons amigos. Não estão fechadas a conhecer novas pessoas e estabelecer novas amizades; contudo, têm uma perspectiva realista em relação ao que podem esperar de pessoas recém conhecidas. Seus verdadeiros amigos são aqueles que as conhecem e com quem convivem há anos. As pessoas fortes acreditam que pessoas podem aparecer em suas vidas por acaso, mas que não é por mero acaso que permanecem. Valorizam seus amigos verdadeiros como se fosse pedras preciosas, o que de fato são.
Por fim, estas pessoas tem a crença de que algo maior existe e determina o fluxo das coisas. Não acreditam necessariamente em Deus, na figura do velhinho de barba e cabelos brancos assentado sobre uma nuvem branca ou felpuda. Mas crêem em uma energia maior, que seja, que faz com que não estejam aqui por acaso. Que há algum tipo de plano ou destino preparado para elas, o que lhes dá maior força ainda para superar as dificuldades e intempéries da vida...
Um copo de água pela metade pode estar tanto meio cheio quanto meio vazio. O segredo da força das pessoas fortes parece ser a forma com que enxergam a vida e lidam com os problemas. São positivas, otimistas, espontâneas, criativas, serenas e respeitam a si mesmas e seus sentimentos. E por conseqüência respeitam a outras pessoas também.
A força parece sempre obedecer a uma direção, que flui de dentro para fora. Tais pessoas não ficam sentadas, esperando que as coisas aconteçam para agir. Fazem seu próprio momento, que parece lhes dar matéria prima para construir, com as próprias mãos, a sua vida e a sua felicidade.
Abril de 2004

As Mulheres e o Sexo

Outro dia eu e minhas amigas tivemos uma reunião com o editor chefe de uma revista masculina. Conversávamos, obviamente, sobre sexo. Ele nos falava da época em que a sexualidade feminina começou a deixar de ser tabu, e de como idéias como desejo, sexo livre e despreendimento emocional feminino soavam como loucura a ouvidos mais puritanos. Nos chamava a atenção para o fato de que este assunto está absolutamente “em vogue” nos últimos tempos e que, hoje, todas as mulheres defendem esta idéia.
De fato, as mulheres vêm tomando as rédeas de sua sexualidade com destreza cada vez maior nos últimos tempos. Transam quando querem, como querem e com quem querem. Mas a pergunta que não sai da minha cabeça e que fica martelando – como diria o Hercule Poirot de Agatha Christie – nas minhas pequenas células cinzentas é: porque querem? Afinal de contas por que é que, depois de tantos anos da revolução feminina, as mulheres precisam continuar provando ao mundo que podem se comportar como os homens?
Outro dia estava conversando com minha analista, e nosso assunto era justamente comportamentos atuais de homens e mulheres. Chegamos a conclusões interessantíssimas. Na verdade, as mulheres estão totalmente sem limites pois estiveram, por muito tempo, extremamente limitadas. Se antes sua ambição maior era ser a melhor cozinheira dentre as esposas dos colegas do trabalho do marido, agora podem presidir tais empresas. Se antes nem votar elas podiam, hoje em dia podem se candidatar a cargos públicos como os homens, e atentemos para o fato de que a uma mulher ocupou o cargo de prefeita da maior cidade do país. As mulheres ainda estão em um momento de explorar o campo recém conquistado, e é exatamente isto que estão fazendo também no que se refere aos relacionamentos afetivos e sexuais.
Mas a relação de um homem e uma mulher é uma relação de complementariedade, na qual se um avança, o outro tem que recuar. E é isso que os homens estão fazendo. Os homens estão muito mais assustados do que as mulheres – e muito mais perdidos também. Se a mulher ainda não definiu qual é o seu papel, o homem muito menos. E é neste ínterim que os problemas ocorrem. Mulheres que não encontram homens que lidem bem com a nova posição “ativa” das mulheres (afinal de contas, se elas podem trabalhar e comprar suas próprias coisas, porque não podem elas ter a iniciativa de pedi-los em casamento?), homens que não encontram mulheres que tenham a paciência de esperar pelo “timming” deles de se compremeter de verdade (sim, porque além de tudo, somos muito mais apressadinhas no quesito “envolvimento”)...
Onde esse movimento todo vai parar, ninguém sabe. Mas eu tenho minhas suspeitas... Outro dia estava conversando com minha amiga mais “libertina”. Ela não enche a cabeça de besteiras conservadoras quando rola a oportunidade de sexo eventual no meio da tarde, e não fica se sentindo usada se transa com três no mesmo dia. O grande problema dela e a dúvida que a aflige é a seguinte: deveria se sentir mal por ter tal comportamento? Levou esta questão para sua análise, e saiu de lá aliviada. Porque descobriu que, na verdade, o que busca com todas essas desventuras sexuais, é tão somente a mesma coisa que as que não transam tão ativamente buscam: ser amada.
Todas as mulheres são assim. Todas querem, mais que tudo na vida, ser amadas. A forma com que cada uma faz isso é um problema única e exclusivamente pessoal. Acho ótimo que as mulheres testem seus limites. Acho ótimo que tenham experiências que lhes proporcionem o auto-conhecimento. Mas acho também interessantíssimo que, as coisas tendo mudado tanto, a busca feminina continue sendo a mesma: encontrar um homem bom, honesto e respeitável, que possa lhe conceder um lar estável, o sobrenome e um casal de filhos.
Fico pensando se na verdade as coisas não voltarão exatamente ao ponto de onde partiram. Se haverá um dia em que o comportamento atualmente considerado “promíscuo” será tão ultrapassado que voltaremos a valorizar atitudes dé modé como esperar um cara certo para transar, tendo a certeza de que ligará no dia seguinte e que a noite de prazer certamente terá uma continuidade.

O que, pelo menos na minha visão das coisas, faz muito mais sentido.
Março de 2005

terça-feira, 22 de maio de 2007

Meu Maior Amor Que Não Foi Amor

Eu estava vivendo uma História de Amor. História de Amor com letra maiúscula, daquelas que rolam nas novelas, ou daquelas que a gente ouve quando é criança e é chamada de “conto de fadas”. Com direito a muitos suspiros, muitos frios no estômago e muitas emoções. Mas acabou.

E não acabou porque o cara me deu um fora ou porque desinteressei da pessoa. Acabou porque descobri que eu não estava vivendo uma História de Amor com outra pessoa. Estava vivendo comigo mesma. Depois de tanto tempo sozinha, estava sendo ótimo ouvir o quanto eu era especial para outra pessoa. Estava sendo ótimo ouvir que sentiam saudades de min. Estava sendo ótimo receber as mensagenzinhas de texto que eu estava recebendo no celular. Estava sendo ótimo me sentir gostada. Me sentir ótima por estar sendo realmente ótima para outra pessoa.

Ótimo, mas de repente percebi que eu não sabia se a outra pessoa era ótima para mim. Um cara de quem eu havia me tornado amiga, e que depois de um mês de amizade me admite que gostava de mim, um dia antes de ele viajar por tempo indeterminado para fora do país. Um cara que lotou a minha caixa de mensagens do celular nos primeiros dias, que respondeu cada um dos emails que eu enviei depois que ele foi embora. E que um dia não respondeu mais, o que me deixou muito triste. Mas não estava sofrendo tanto quanto era de costume... E aí descobri. Não era uma História de Amor porque não tinha nem dado tempo para poder falar em amor.

Era o script perfeito de uma história de amor. E como eu me entreguei a ela! Com unhas e dentes. Pensei, “esse é o tipo de coisa que acontece nos filmes! É o tipo de coisa pela qual esperei minha vida inteira!”, e já pude visualizar cenas apaixonadas de reencontros em aeroportos. Escrevi um email falando sobre meus sentimentos, que aos olhos de desinformados poderia passar mesmo por um Email de Amor. Mas hoje percebo que não era de amor, não.

Era um Email de Carência. Carência por estar sozinha, carência por estar há tanto tempo sozinha, carência por estar há tempo demais sozinha. Era um Email de Saudades. Saudades de gostar de alguém, saudades dos frios no estômago, saudades dos loopings emocionais. Era um Email de Vontade. Vontade de ouvir de alguém as coisinhas fofas que eu ouvi, vontade de ter em quem pensar, vontade de dormir e acordar pensando na pessoa.

Não era um Email de Amor. Mas aos olhos de desinformados poderia ter passado por um. E aos olhos dele, do meu Amor que não era Amor, pode ter parecido um. E pelo visto meu Amor que não era Amor se assustou, e não me respondeu. E eu fiquei esperando... e a resposta não veio.

Mas eu sofri só um pouco, o que é bastante significativo em se tratando de uma escorpiana. Não achei que fosse morrer, não fiquei deprimida e nem tive vontade de me mudar para a China. Fiquei um pouco chateada, é verdade... Mas chateada por mim, por não ouvir mais coisinhas fofas e nem receber mais mensagenzinhas meigas no meu celular. Fiquei morrendo de saudades de ter em quem pensar. Fiquei morrendo de vontade de ter um Amor. Mas um Amor que seja Amor mesmo.

Mas olha... apesar de tudo, esse vai ficar prá minha história, e tem lá seu mérito. Porque foi o maior Amor que não foi Amor que já tive na vida...
Março de 2005

Se a Moda Pega Parte II - A Saga Continua

Quando escrevo um texto, os comentários que recebo são sempre a parte mais interessante. Adoro perceber as repercussões das minhas idéias na cabeça das pessoas, e muitas vezes acabo por rever meus conceitos acerca dos temas. Claro, não são todas as pessoas que respondem; quando o fazem, entendo que aquele texto em específico mexeu com aquela pessoa em específico, a fez pensar, avaliar e se questionar sobre suas próprias opiniões. Alguns textos não geram nem um único comentário; outros, lotam minha caixa de mensagens. Mas nunca havia me acontecido o que aconteceu desta vez. Quase todas as pessoas para quem mandei meu texto “Se a Moda Pega...” fizeram algum tipo de comentário... O que me motivou a escrever um novo texto sobre o mesmo tema, ampliando um pouco o assunto e colocando alguns pingos nos is.

A maioria das pessoas me perguntou se, afinal, eu era contra ou a favor do sexo a três – ou a quatro, cinco... Gente, não sou contra ou a favor de nada nessa vida, acho que ninguém tem o direito de pregar o que as outras pessoas devem fazer. Cada um sabe de si, o que quer, o que deixa de querer, o que faz bem ou não, o que acha conveniente ou não para a própria vida. Só fico realmente me questionando os verdadeiros objetivos das pessoas ao se envolverem nesse tipo de experiência. Curiosidade? Vontade de provar do desconhecido? Cada um sabe de si, e quem já fez que responda a si mesmo essas perguntas – claro que, se quiserem dividir comigo esta conclusão, fiquem à vontade, afinal minha profissão me faz ser muito curiosa...

Algumas pessoas negaram veementemente a possibilidade de passarem um dia pela experiência; destas também desconfio, porque afirmar que nunca vai se fazer X ou Y coisa, para mim, é no mínimo duvidoso. Como é que se sabe o jeito que vai se pensar daqui há cinco, dez anos? Como diz o dito popular – sempre de uma sabedoria inigualável – ninguém sabe o dia de amanhã. Eu não boto minha mão no fogo por ninguém, nem por mim mesma. É mais garantido calar-se sobre o amanhã, lembrar-se do ontem e afirmar apenas o hoje.

O mais engraçado foi a curiosidade daqueles que já fizeram, em saber quem são as outras pessoas que eu citei. Minha amiga que quase me fez bater o carro jurou que não fala mais comigo se eu não contar quem são as outras pessoas envolvidas. E eu afirmo: não conto. Sigilo profissional e pessoal absoluto. E as que não fizeram ficaram morrendo de medo que as outras pessoas achassem que as citadas foram elas... Dei boas risadas.

Muito amigos meus tiveram a nobre intenção de me consolar quanto à minha sensação de rejeição por nunca ter sido convidada para um programinha desses. Convidaram-me de imediato, ressaltando apenas a exigência de que o outro participante fosse uma mulher. Eu até poderia escolher. Algumas amigas me confessaram que morriam de vontade, mas que não tinham coragem. Se por acaso eu decidisse fazer com alguém, topavam a experiência junto comigo. Outros tantos me confessaram que já haviam feito – uma amiga disse até que a experiência foi tão mal sucedida que representou um papel importante em sua busca por terapia. Não aconselha para ninguém, mas fez questão de contar mais uma vez detalhes cabulosíssimos, que mais uma vez envolviam conhecidos meus. Porque será que desta vez não me surpreendi?

Um paquera se mostrou receptivo a dividir a experiência comigo, no momento em que eu achasse mais oportuno. Assim mesmo, com a mensagem toda contida nas entrelinhas. Bem descompromissado, como convém. Um outro fez questão de discutir bastante o assunto, dando sua opinião geral à respeito e afirmando que já tinha até me convidado para participar de um ménage e que eu não o tinha levado à sério... e eu verdadeiramente não soube o que responder, porque nem me lembrava desta “suposta” proposta...

Meu pai disse ter ficado muito assustado, porque não imaginava que as coisas estavam neste ponto. Depois de alguns dias pareceu ter revisto seus conceitos, afirmando que, sem levar em conta sua filhota querida, estava entusiasmado com a nova moda. Minha mãe exprimiu todos os seus pensamentos à respeito através da atitude de não pronunciar uma única palavra sobre o tema – e ela sempre elogia o que escrevo. Minha terapeuta fez do texto o tema de uma sessão inteira – inteirinha!!! Com direito a menção da triangularização edípica da primeira infância e tudo...

E eu fiquei me perguntando... e era para tudo isso? Nunca quis causar polêmica ou levantar discussões acaloradas sobre os temas dos quais trato em meus textos. Chegaram até mesmo a me dizer que eu seria co-reponsável por qualquer bacanal ocorrido após o envio do meu texto. Eu? Justo eu, que nunca participei de um bacanal? Ser co-reponsável! Me achei muito importante.

O fato é que tudo isso mostra como esta é uma idéia presente no imaginário de todos. Todo mundo pensa, ou já pensou, em participar de uma experiência dessas. Todo mundo tem, ou já teve, um desejozinho, mesmo que inconsciente, em participar dos Sonhos de uma Noite de Verão... Não posso deixar de levar em consideração que esta moda toda não é tão moderna assim, afinal na Roma Antiga já existiam os bacanais. Mas que, influenciados pela sociedade de hoje, em que tudo pode, estão ressurgindo com uma força imensurável... O problema parece ser que, ao mesmo tempo em que todas as atitudes são permitidas, os sentimentos despertados pela vivência não têm espaço para serem trazidos á baila...

É por isso que afirmo, do alto de minhas tamancas: não sei de nada nem de ninguém. Sei mal e porcamente de mim mesma, e olhe lá. Agradeço a todos os convites recebidos; obrigada por não permitirem que eu me sinta rejeitada. Mas este meu momento ainda não chegou... Não sei, acho que sou uma menina à moda antiga, daquele tempo em que o sexo era bem mais do que simplesmente prazer sem limites. Mas, se algum dia eu mudar de idéia, prometo que alguns de vocês serão os primeiros a saber...

E cada um que entenda como quiser.
Abril de 2005

Se a Moda Pega...

Gente, estou escandalizada. Outro dia estava conversando com uma amiga no telefone, perguntando como ela estava e o que ela tinha feito e ela me responde, toda alegre: “Sexo a três!”. Depois de ter uma parada cardíaca temporária, consegui prestar atenção ao final da história. Minha amiga transou com dois homens ao mesmo tempo, dois amigos. Amigos entre si, amigos dela, e o que é pior – meus amigos!! Depois de visualizar as cenas que ela me narrava em detalhadíssimas etapas, desliguei o telefone me sentindo esquisita.
No mesmo dia comentei o fato com uma outra amiga, amiga de anos, daquelas que se conhece a vida inteira. Sem me dar tempo de comentar as minhas impressões sobre o fato, ela dá um gritinho, gargalhando em seguida: “Eu também, eu também!!”. Quase bati o carro, mas consegui me controlar para então começar a visualizar outros tórridos detalhes da história que ela me contava. Essa não tinha feito com dois homens, mas com um homem e uma mulher. Amigos. Entre si. Amigos dela. E meus amigos, é claro. O cara era ex namorado da outra mulher, a melhor amiga dela. E ela tinha saído com o cara “pra transar” algumas vezes, meses antes. Teve o cuidado de me tranqüilizar que ela e a menina não tinham transado, sendo cuidadosas para mal se tocarem – como? – durante o ato.
Naquela noite fui dormir me sentindo careta, ultrapassada e, como diria uma outra amiga – será que essa também já fez um menàge? – obsoleta. Gente, eu nunca participei de um bacanal! Todas as minhas amigas estão transando com mais de uma pessoa ao mesmo tempo – ao meeeesmo tempo! – e eu não! Comecei a me questionar se eu tinha algum problema. Alguma disfunção sexual, psíquica ou até mesmo espiritual, porque por mais que eu já tenha pensado nisso, nunca sequer cogitei ir com a idéia adiante. Fantasiar é uma coisa, mas partir para as vias de fato, isso já é outra completamente diferente.
Depois dessas duas, uma terceira me confessou que já transou com dois alguns anos atrás, e, para falar a verdade, estranhei bastante a reação de uma quarta amiga ao me ouvir falar sobre o assunto. Estou chegando à conclusão de que todo mundo já fez isso. E se não fez, ainda vai fazer.

Apesar de modernosa e descolada em vários aspectos, de ter sempre me orgulhado da minha cabeça aberta e da ausência de preconceitos, hei de admitir que não me sinto – ainda – à vontade com a idéia. Talvez tenha sido a minha criação, não sei. Mas por mais que tente, e juro que ultimamente venho tentando, entender o que motiva as pessoas a cruzarem essa linha que tangencia a perversão por vontade própria, ainda não cheguei à conclusão nenhuma. Pelo amor de Deus, quando falo de perversão, não falo preconceituosamente, mas no sentido psicanalítico da palavra. Para Freud a perversão era uma estrutura de personalidade, e o ato sexual perverso seria qualquer um desviado do ato sexual normal – que, no meu conceito, envolve apenas duas pessoas, porque senão, ou sobra, ou falta alguma coisa!!

Penso que a sociedade está prestes a acabar. Freud fala que não há civilização sem repressão, porque para se viver em sociedade torna-se necessário reprimir alguns impulsos. Imaginem a situação: se a coisa começar a ser assim, daqui a pouco as pessoas vão se conhecer e se identificar pelas pessoas com as quais transaram em comum! Talvez até passe a fazer parte do curriculum! Na carteira de identidade, além da observação “Doador de Órgãos e Tecidos”, vai constar: “Participante Ativo de Orgias”! Talvez até se passe a declarar gastos com Motel e derivados no Imposto de Renda, para ser ressarcido depois!

- Oi, é você a Maria que transou com o Paulo e o João?
- Sou, e você, quem é?
- Laurinha, do Pedro, do Gustavo...
- Do Fábio, da Ritinha...
- A Ritinha? Você conhece a Ritinha?
- Ih, transo com ela desde os catorze anos! Mas calma, agente nunca se tocou...

Eu sempre tive uma visão realista e não romanceada do sexo. Sexo é bom, ninguém questiona. Tem gente que até fala que sexo é que nem pizza, mesmo ruim é sempre bom. Mas o sexo não é uma coisa para ser feita entre duas pessoas? Ou minha lógica está errada? Afinal, entre outras modalidades possíveis de serem praticadas em uma relação, sexo implica em dois – eu disse dois – órgãos sexuais. Dois em um, uma fusão. Ninguém deve se esquecer de que por mais que se tenha prazer no sexo, ele tem uma função, que é a reprodutiva. Em que se unem um óvulo e um espermatozóide. Claro, existem os casos dos gêmeos, mas inicialmente é mais ou menos assim que a coisa funciona; um e um. Dois.

E de repente, o que é para ser vivido a dois, vira um três, quatro, cinco, talvez um bacanal com seis. Por mais moderninha que eu seja, não consigo entender o funcionamento por trás do comportamento. Mas a minha mente de psicóloga não deixa nada passar desapercebido, e eu consegui encontrar uma coisa em comum em todas as histórias. Um padrão! E se você foi observador também deve ter conseguido.

Todos os envolvidos eram amigos. Não me sinto tentada a parar para pensar que todos eram meus amigos – será que todos os meus amigos estão transando entre si e nunca me convidaram?! Mas em todos os casos não era o sexo o pano de fundo do encontro. Era a amizade. E amigos de longa data, não falo de uma amizade de meses. Melhores amigos. Parece que por mais moderninhos que sejam, e atuais e descolados, tinham um medo tão grande, mas tão grande da nova experiência que ela só poderia ser dividida com alguém que se conhece, alguém em quem se confia.

Não posso deixar de pensar na complicação que isso pode trazer. Se transar com um amigo já é complicado – a amizade muda, alguma coisa fica estranha – imagina se você começa a transar com todos os seus amigos. Você liga para uma amiga pra combinar uma balada e ela fala que não pode, porque já combinou de transar essa noite com outras pessoas. E se vira moda, até você, daqui à pouco, vai estar transando com os seus amigos – se é que já não está! – por pura falta de companhia para sair nos finais de semana.

Os dias atuais são marcados pela costumez, pela independência, pelo liberalismo. Tudo pode, tudo é lindo, tudo é atual. Nossas crianças experimentam um nível de liberdade que eu jamais sonhei em ter quando era mais nova. Vemos meninas de onze, doze anos perdendo a virgindade. Eu, com essa idade, brincava de Barbie. Tá certo, a brincadeira sempre acabava com a Barbie transando com um dos meus Ursinhos Carinhoso; mas não era eu transando com o menininho do meu prédio, filho do síndico, por quem eu era apaixonada! Entre uma situação e outra existe uma coisa muito importante, a repressão de um impulso que não podia vir à tona, e que era então sublimado nas minhas brincadeiras. Era, no passado.

Hoje vivemos tempos de eu-sou-de-todo-mundo-e-todo-mundo-é-meu-também. É enorme a quantidade de reportagens em revistas sobre sexo grupal, casas de swing e trocas de casais. Quem faz é moderno. Quem não faz, é careta; por mais estranho que pareça, o que era o normal ontem, é o anormal de hoje. Estou vendo a hora em que terei vergonha de contar para as pessoas que eu nunca transei com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Talvez comece a mentir que fiz também. Só para ser pop, para estar na moda e ser cool. Confesso até que estou me sentindo rejeitada por nunca alguém ter me convidado para um programinha desses...

Não sei, gente, mas se a moda pega...
Março de 2005

sábado, 12 de maio de 2007

Dores e Metamorfoses

Enxaqueca dói. Prender o dedo na porta dói. Usar sapato apertado durante horas dói. Cólica, machucado, ressaca doem. Traição, arrependimento, mágoa, tristeza doem. Eu poderia passar horas e horas enumerando centenas, talvez milhares de coisas que doem tanto quanto cair de skate ou de bicicleta, tanto quanto ser atropelado ou levar um baita rola da escada. Mas existe uma dor que dói mais do que qualquer outra coisa... A de esquecer um amor que não deu certo.

Não importa qual tenha sido o motivo. Talvez você tenha gostado mais da outra pessoa do que ela de você, talvez você tenha sido traído, enganado, passado para trás. Talvez tenha criado, como diz um amigo querido, um castelo de cartas, uma série de expectativas que não foram atendidas pelo outro. Talvez tenha se atropelado, metido os pés pelas mãos, atravessado. Ou talvez tenha simplesmente levado um belo pé na bunda sem nem saber ao certo o motivo.

Nada disso faz diferença, quando se atravessa essa fase terrível de reintrojetar projeções que haviam sido feitas. Uma série de idealizações são colocadas à avaliação, uma série de pontos de vistas são reanalisados, toda a energia que havia sido depositada naquela pessoa e naquela relação tem de ser reaplicada em você mesmo. Pode ser que você venha a se sentir como um pastel sem recheio, ou como uma bexiga esvaziada, jogada no chão no final de uma festa.

Nada dói tanto quanto esquecer um amor. Não importa se vocês estiveram juntos por anos, meses ou semanas. Se você estava apaixonado, se você estava entusiasmado, se você não esperava de forma alguma pelo afastamento provocado pelo término, irá sofrer como uma criança que se vê privada de seu brinquedo mais querido. Claro, pessoas e relações não são como brinquedos, meros objetos que se tira de um lugar e põe em outro. Mas quando se é criança, o brinquedo não é apenas o brinquedo, o objeto em si, mas representa uma série de vivências, reais ou não, de diversão, de fantasia, de pura mágica. De pura magia e encantamento.

Quando se está apaixonado, algumas vezes nenhum dos defeitos que você até conseguia enxergar na outra pessoa servem de motivos bons o suficientes para se conformar com o afastamento. “Afinal, ele trabalhava demais, quase não nos víamos...”, “Ela era muito ciumenta, infernizava a minha vida!”, “Agora vou poder viver tudo o que nunca pude ao lado dele...” são frases que até podem passar pela sua cabeça, mas você sabe muito bem que não passam de meras racionalizações na tentativa de se conformar com uma ruptura que não estava nos seus planos, tentativas de se proteger do contato com o sofrimento decorrente da realidade de que as coisas não aconteceram da forma como você esperava.

Durante um relacionamento, é impossível que você não tenha construído este castelo de cartas. Todo mundo, quando se envolve e se apaixona, imagina, nem que seja apenas por alguns breves momentos, como seria se esta pessoa viajasse com você para aquela praia maravilhosa, local que você facilmente definiria como o paraíso na Terra. Não é tão difícil que você tenha, nem que por relance apenas, imaginado como esta pessoa seria como pai – ou mãe – dos seus filhos. Como seriam as próximas férias em comum; como a pessoa cuidaria de você se você ficasse doente; como seriam doídas as semanas de distância se você ou ela viajassem a trabalho por algum tempo; e como seriam maravilhosos os reencontros.

E quando ocorre o rompimento, todas estas fantasias tem de ser desfeitas, todos os sonhos em comum se desvanecem, e isso causa obviamente uma frustração muito grande. A forma que cada um encontra para lidar com esta frustração é única. Alguns podem sair em uma desenfreada e maníaca busca por uma outra pessoa, que se encaixe adequadamente neste “buraco” recém criado, evitando, desta forma, sentir a falta e o vazio. Outros podem se negar a próximos relacionamentos, seja pela dificuldade em se desligar do anterior, seja por medo de sofrer novamente. Algumas outras pessoas podem fingir que nada estão sentindo, buscando assim, nas altas horas das baladas, empregar toda a energia que lhes sobra entoando fortemente o hino “não sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”...

Existem, entretanto, aquelas pessoas que aprenderam que nada disso é suficiente para que a dor passe mais rápido. Essas pessoas encaram todo o luto e sofrimento advindos do fim da relação, encasulam-se como a lagarta, passam por um longo e penoso processo de transformação, percebem seus erros, suas expectativas, analisam as próprias atitudes e as próprias frustrações. Como a lagarta, que sofre uma metamorfose real em seu corpo, para se transformar em borboleta, essas pessoas sofrem uma metamorfose simbólica, pois percebem que nunca mais serão as mesmas de antes.

Essas pessoas podem até se tornar amargas, enraivecidas e desesperançosas por algum tempo, mas tudo isso passa depois de perceberem que na verdade sofrem mais por si mesmas do que pela falta do outro. Sofrem porque percebem que não foi desta vez que as coisas deram certo, sofrem por perceberem que tudo aquilo no que acreditaram, pelo que lutaram, o que sonharam... que tudo isso acabou, e que mais uma vez estão sozinhas, com seus defeitos, com suas faltas, com suas limitações.

Mas ao invés das outras, que de uma forma ou de outra evitam sentir o que já de fato sentem, essas pessoas estão infinitamente mais próximas de se tornarem borboletas, que em breve voarão, livres e belas, colorindo a paisagem e alegrando seu Jardim da Vida.
Março de 2005.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Aproveite o Dia

Uma coisa engraçado sobre nós, seres humanos, é a nossa ilusória idéia de que viveremos para sempre. Apesar de sabemos que um dia a vida vai acabar, é incrível como evitamos entrar em contato com esta verdade. Com a única certeza que temos em nossas vidas.

Achamos que sempre teremos tempo para viver o que não vivemos hoje, para fazer o que não fizemos até agora. Adiamos nossos planos, deixamos para depois o ato de tomar decisões difíceis, de encerrar relações, de fazer as pazes, de dizer que estamos tristes ou apaixonados. Deixamos pessoas especiais passarem por nós e sumirem de nossas vidas, sempre pensando que teremos o amanhã para nos dar conta dos erros e corrermos atrás do prejuízo.

Evitamos, o tempo todo, enfrentar a única verdade que existe desde que o mundo é mundo: que o tempo passa, que a idade chega, que as rugas são inevitáveis, e que o dia em que deixaremos este mundo também chegará um dia. Se tudo der certo, morreremos com idade, dormindo, para não sentirmos dor. Mas nem sempre é assim. Às vezes acidentes acontecem; algumas pessoas adoecem e partem ainda muito jovens. Outras têm um descontentamento tamanho com a própria vida que tomam a iniciativa espontânea de abandonar esta existência.

Combatemos o tempo como se ele nos fosse um inimigo. Usamos cosméticos rejuvenescedores cada vez mais cedo. Mulheres não envelhecem, ficam loiras. O número de homens que pintam os cabelos quando estes começam a ficar grisalhos também é cada vez maior. Homens e mulheres correndo atrás do tempo perdido, mais do que por uma questão estética, por uma questão de simples sobrevivência. Que espaço o mundo tem para os velhos?

Crescemos e nos tornamos adulto com esta certeza: a de que viveremos para sempre, que a morte nunca chegará e que podemos fazer o que quisermos hoje, pois sempre haverá o dia de amanhã para consertar nossas burradas, que sempre haverá tempo para nos arrependermos, que sempre haverá um amanhã, ou um depois de amanhã, para sermos felizes. Isso é mentira.

Outro dia estava assistindo um filme com a minha irmã, a respeito do qual ela precisava fazer um trabalho para a faculdade. “Aproveite o dia” era a moral da história. Peguei-me a pensar sobre o significado destas três palavras. Aproveitar o dia é uma coisa difícil. Aproveitar o dia não significa que tenhamos de ser irresponsáveis na busca incansável pelo prazer. Não significa que as ações não impliquem em reações e que não tenhamos de assumir as conseqüências de nossas atitudes de forma responsável. Mas este pensamento, esta filosofia de vida ensina que às vezes o melhor momento de nossas vidas é o hoje.

A cada dia, um novo mundo nasce. A cada dia, as esperanças se renovam, milhares de pessoas nascem e milhares delas morrem. A cada dia pessoas se encontram, se reencontram e se afastam. A cada dia amizades são feitas, outras desfeitas. O dia de ontem já passou e acabou, não há nada que possamos fazer a respeito. O amanhã ainda não chegou, e por isso não temos outra alternativa a não ser esperar; e enquanto esperamos, vivemos o dia de hoje.

Aproveite o dia. Aproveite cada dia de sua vida como se fosse o primeiro e o último; muitas vezes o é. Aproveite cada dia de sua vida, procure apenas se recordar do ontem e sonhar com o amanhã. Aproveite cada dia da sua vida como se você nunca houvesse tido um outro dia. Como se nunca houvesse vivido antes. Faça tudo o que acha que deve fazer exatamente agora.
Este é o momento. Afinal, deve haver algum motivo para o presente se chamar Presente.
Novembro de 2005

Suzane Louise

Ultimamente tenho tido medo de dizer o que penso sobre a tal Von Richthofen. Olhos se arregalam quando digo que tenho pena – muita pena – da tal garota. A verdade é que, na adolescencia, época em que todos estamos mais propensos à estupidez, Von Richthofen cometeu um ato imperdoável: o Parricídio. Mentes doutoradas preenchem colunas de revista com protestos e tentativas de responder à inevitável pergunta: como deve funcionar a mente da criminosa? O que, afinal de contas, deu errado na criação da ré confessa? Em quê – e essa é a pergunta que mais aflige todos os pais da classe média-alta brasileira – Marísia e Manfred erraram?

Tirar a vida de outro ser humano é um ato que transcende todas as alternativas existentes para a resolução de um conflito. Em vulgas palavras, é apelar. Para matar os pais, então, é necessária a existêcia de um cenário psíquico bastante específico, criado a partir das relações existentes entre pais e filho. O assassinato dos pais de Suzane, visto sob esta ótica, foi apenas a manifestação máxima, chocante sintoma de uma doença relacional existentre na família Von Richthofen.

A mãe era psiquiatra, profunda conhecedora do escuro labirito em que pode se transformar a mente humana. Muitos perguntam: como Marísia pôde não perceber a estranheza da filha, bem debaixo de seu nariz? Já li por aí que era uma pessoa “estranha”, que na infância gargalhava sempre que via a mãe, professora, dar com a régua na mão dos alunos desobedientes. Se Marísia era sádica, quem sai aos seus não degenera.

O pai, Manfred, era um engenheiro que gostava de dizer aos quatro ventos que era descendente do Barão Von Richthofen, mais conhecido como Barão Vermelho, famoso expoente da aeronáutica alemã que combateu na Primeira Guerra Mundial. Só que era tudo mentira. Na época do crime, uns jornalistas foram atrás dessa história e o porta-voz dos Barões Vermelhos disse que Manfred não passava de um genérico. O que dizer da auto-estima e aceitação de si mesmo, e das próprias origens, deste senhor? E o que poderia ser dito sobre a forma com que transmitiu estes valores à seus filhos?

E de repente temos nossa Baroneza Von Richthofen. Uma menina que, segundo a família de Marísia, era grudada na mãe, até que o Sapo Daniel Cravinhos apareceu e estragou tudo. No começo os pais não deram importância ao namoro que, acreditavam, acabaria no exato momento em que Suzane se desse conta de que, Baroneza que era, merecia coisa melhor. A verdade é que a vida de Suzane, que era obrigada a fazer jardinagem por um hora, todos os dias, sempre que viajava para o sítio da família em São Roque, devia ser um saco. E, talvez pela primeira vez na vida, ela sentiu uns bons frios no estômago, descobriu o sexo ao lado de um menino meio largado de família humilde. A ironia é que, talvez, tenha sido no seio desta família humilde que Suzane pôde sentir algum calor humano, que era claramente compartilhado com o irmão mais novo Andreas. Quem não se lembra da cena do órfão soltando da mão de seu tio materno, na missa de sétimo dia dos pais, para correr na direção do pai dos assassinos de seus pais? Algo não se encaixa nisso tudo.

A verdade é que me parece muito mais provável que Manfred e Marísia tenham sido maus pais do que bons. Não é pagar colégio caro, escola de inglês, caratê, roupinhas de marca e TV a cabo que faz dos pais bons ou maus. Se não, pobre não era bom pai. O que me parece é que existia uma doença muito grave, em estado avançado, percorrendo as veias da família Von Richthofen, e que não foi diagnosticada a tempo.

Nada disso muda o fato de que Suzane errou. Errou, e o que fez é imperdoável. Nunca mais vai passar despercebida, nunca mais vai poder comprar um cigarro no RedeShop sem que a vendedora da padaria olhe para ela e pense, “criatura estranha que matou os pais”. Errou, e deve pagar por isso.

Mas mais do que pagar por isso, Suzane deve ser tratada. Cadeia não é o lugar dela, e sim uma Insituição Hospitalar Judicial. Porque é uma menina doente do ponto de vista mental, não daquelas que fica batendo com a cabeça na parede ou babando pelos cantos, mas uma doente cujo cérebro funciona de uma maneira errada, cuja mente não é similar as nossas mentes. Suzane nasceu sem um “chip”, e quando o meio à sua volta subiu de temperatura, assou-se o bolo. E nada nem ninguém pode prever quando é que um novo bolo será assado, pelo simples fato de que não se pode controlar o ocasional aumento de temperatura da vida, e os ingredientes psiquicos e emocionais de Suzane estão severamente estragados. Suzane precisa ser tratada pois, me desculpem, eu não precisaria ser psicóloga para afirmar que Suzane é doida de pedra.

A verdade é que, quando a sociedade coloca Suzane como a vilã ao invés de uma menina doente, algo se aquieta dentro do peito de centenas de famílias de classe média-alta, que intimamente se questionam se são pais suficientemente bons. Ao trancar Suzane no xilindró trancarão, no sótão emocional, o assustador monstro da insegurança de que talvez não estejam fazendo um trabalho bem-feito
com seus filhos. Quem garante que a dócil menina dormindo no berço ao lado não se transforme, em alguns anos, em uma assassina fria, que se certificará de que os pais estarão mesmo dormindo para que nada saia errado?

Eu tenho pena de Suzane Louise Von Richthofen. Tenho pena porque Suzane, ao lidar com sua doença familiar, escancarou a doença da sociedade bem na cara de todos, sem que ninguém pudesse fazer nada. A verdadeira causa de todos os sintomas de nossa doente sociedade, que mostra, através das drogas-espirros e da criminalidade-tosse, que algo não vai bem. Agora, Suzane virou mártir – “queimemos as bruxas na fogueira, apaguemos o incêndio, e que venham os antibióticos para que possamos varrer as bactérias de nossas vidas!” – e em relação a isso, ela nada poderá fazer. Vai ter que pagar pelo seu crime, e pelos crimes de todos nós, que fechamos os olhos para tudo o que acontece a uma distância superior a cinco centímetros de nossos umbigos. E que descanse em paz.
Novembro de 2006

Relativizando um Pouco

Tenho uma amiga que está sempre de bem com a vida. Não que sua vida seja um mar de rosas constante; muito pelo contrário. Atualmente ela atravessa um momento difícil. Está desempregada e sua família passa por dificuldades financeiras, com as quais ela em nada pode colaborar. Está solteira aos 31 anos, há algum tempo sem conhecer alguém realmente interessante, e seu maior sonho é casar-se e ter filhos. Mas sempre que nos falamos, noto em sua voz sua característica animação. Ela é uma pessoa que não se permite esmorecer facilmente.

Outro dia ela me contou uma história. Havia um menino pobre, que não tinha dinheiro nem para comer; e o sonho do menino era ter um cavalo. Um belo dia passa em frente à sua casa um cavaleiriço, conduzindo cinco belos cavalos e um potro pela estrada. O cavaleiriço vê o menino sentada na calçada e lhe pergunta se ele gostaria de ficar com o potro; preparava-se para um grande percurso, e tinha dúvidas sobre a capacidade do potro em completar a jornada. O garoto, sem titubear, aceita a oferta e fica com o potrinho. O vizinho, que a tudo assiste da porta de sua casa, dirige-se ao menino: “Mas que sorte a sua! Pobre como você só, tem como sonho possuir um cavalo, e eis que ganha um de um viajante desconhecido!!”. Ao que o pai do menino pobre responde: “Sorte, ou azar”.

O potro cresce e se torna um belo cavalo de porte. Um dia, sem que ninguém pudesse esperar por isso, o cavalo foge, o que faz o menino sentir-se muito triste. Novamente o vizinho comenta: “Que azar! Pobre como você só, tem como sonho possuir um cavalo, e eis que ganha um de um viajante desconhecido! O potro cresce e se transforma em um belo cavalo, e eis que um dia, sem mais nem menos, foge!”. Ao que o pai do menino responde: “Azar, ou sorte”.

Algum tempo depois, o cavalo reaparece, trazendo consigo duas fêmea e outros três machos, todos selvagens. A família do menino pobre constrói então um cercado em seu quintal, e começa a domesticar os cavalos. Rapidamente os cavalos se reproduzem, e eles iniciam uma pequena criação. O vizinho novamente se faz ouvir: “Que sorte a sua! Pobre como você só, tem como sonho possuir um cavalo, e eis que ganha um de um viajante desconhecido! O potro cresce e se transforma em um belo cavalo, e eis que um dia, sem mais nem menos, foge! E algum tempo depois, eis que o cavalo ressurge com outros cinco, vocês começam a domesticá-los e iniciam uma pequena criação!”. Ao que o pai do menino novamente responde: “Sorte, ou azar”.

Um belo dia, enquanto treinava os cavalos, o pai do menino pobre leva um coice de um deles e cai por cima do cercado que se quebra, e um pedaço da madeira rasga sua perna, causando um imenso ferimento. O vizinho novamente comenta: “ Que azar! Pobre como você só, tem como sonho possuir um cavalo, e eis que ganha um de um viajante desconhecido! O potro cresce e se transforma em um belo cavalo, e eis que um dia, sem mais nem menos, foge! E algum tempo depois, eis que o cavalo ressurge com outros cinco, vocês começam a domesticá-los e iniciam uma pequena criação! E eis que um dia seu pai leva um coice, cai por cima do cercado que se parte e rasga sua perna, causando esse imenso ferimento!”. De dentro da casa faz-se ouvir a voz do pai do menino pobre: “Azar, ou sorte”.

Algum tempo depois, o país em que vivia o menino pobre, sua família e o vizinho entra em guerra com o país vizinho. Todos os homens são convocados a apresentarem-se como soldados, menos os velhos, as crianças e os feridos. Assim, o pai do menino pobre é o único homem do povoado a não ser convocado para a guerra. Assume espontaneamente como sua responsabilidade cuidar das famílias que haviam ficado sem seus homens, ajuda a todos e garante que o povoado continue prosperando até que a guerra termine e os homens retornem para suas casas.

Essa historinha, disse-me minha amiga, nos ensina que um acontecimento, analisado individualmente, nunca é bom ou ruim, nunca concerne em si mesmo uma verdade absoluta. Tudo é relativo, já nos dizia Einstein em tempos idos. Algumas vezes podemos ser surpreendidos por acontecimentos inesperados, ruins a princípio, mas que depois de algum tempo mostram-se determinantes para que algo muito bom aconteça.

A verdadeira felicidade depende única e exclusivamente da forma com que enxergamos a vida. Uma pessoa pode ser vítima de um seqüestro, ficar dias em confinamento, ser salva e passar o resto da vida relembrando aqueles terríveis momentos, sofrendo um sofrimento sem fim até o dia de sua morte. Ou pode dar graças a Deus e sorrir, agradecendo por ter se salvado. Tudo depende do ângulo pelo qual enxergamos as coisas que nos acontecem.

Lembro-me de uma outra história, esta contada pelo meu pai. Dois meninos esperavam ansiosos seus presentes de Natal. Os dois haviam pedido ao Papai Noel carrinhos de madeira, como os que haviam visto na vitrine de uma loja chique de brinquedos. Ambos abriram seus presente no dia de Natal, e ambos ganharam a mesma coisa: um pedaço de madeira maciço. Um dos meninos começou a choramingar: “Que azar o meu! Peço um carrinho de madeira e ganho um bloco de madeira maciça!”. O outro estampava um sorriso no rosto. “E você, tão azarado quanto eu, também pede de presente um belo carrinho de madeira, ganha um bloco de madeira maciço e ainda sorri?”, pergunta o choramingoso. Ao que o sorridente responde: “Tenho em minha casa a caixa de ferramentas de meu pai. Na caixa há pregos e um martelo, serrotes, pincel e tinta. Me faltava apenas a madeira para que eu pudesse construir meu próprio carrinho”.

Às vezes é preciso que relativemos um pouco a vida. Talvez não haja pote de ouro nenhum, ao final do arco-íris. Talvez o pote de ouro seja uma simples metáfora, que simboliza quão enriquecedora pode ser a jornada de percurso do arco-íris, vislumbrando maravilhosas paisagens de lá de cima.
Março de 2005.

Trouxa

Eu sou Trouxa. Trouxa assumida, daquelas com luminoso na testa em néon piscando: Trouxa. Já tentei deixar de ser; ser esperta, malandra, mais ligada. Mas as pessoas serão sempre o que já o são, e isso, no meu caso, traduz-se em uma única palavra: Trouxa.

Para quem se perguntar o por que de tanta convicção em auto denominar-me Trouxa, explico. Sou Trouxa, entre outras inúmeras razões, por acreditar que as pessoas são, em sua grande maioria, essencialmente boas. Que não têm a intenção de enganar, ludibriar e usar as outras pessoas em nome de seu bem-estar.

Sou Trouxa por sempre buscar, nos idos do passado das outras pessoas, fatos que justifiquem suas atitudes atuais, nem sempre tão altruístas ou generosas assim. “Coitadinha, nunca se deu bem com os pais”. “É solitário, não tem com quem desabafar”. “Pobrezinho, levou um perdido de uma garota há dez anos atrás e ficou traumatizado”. É, Trouxa de carteirinha. Daquelas que pagam até mensalidade do Clube dos Trouxas Unidos.
Sou Trouxa por acreditar que os crápulas mais inescrupulosos – daqueles que toda mulher, ao se aproximar, deveria proferir o Oxalá “pé de pato, mangalô três vezes” por precaução – podem se tornar pessoas boas. Que só precisam encontrar a mulher certa, geralmente esta Trouxa que vos fala, para entrar na linha e se transformar no genro que mamãe pediu a Deus... Algo como, em termos psicanalíticos, negar a própria falta sendo a personificação da falta que falta no outro, e um outro geralmente de índole. Trouxa, com firma reconhecida em cartório.

Sou, sim, Trouxa. Trouxa por considerar que tudo vale à pena se a alma não for pequena. E se houver algo a ser aprendido em cada experiência, tudo deve de ter um porquê e coincidências não existem. Trouxa por não conseguir prever – qualquer australopitecos conseguiria – que um homem desprezado por uma mulher no passado, fato este freqüentemente lembrado, relembrado e trilembrado por este mesmo homem em quaisquer situações, irá, assim que tiver a chance, desprezar a vingar-se desta mesma mulher. Trouxa por afirmar, do alto de minhas tamancas, que não quero mais que ele ligue. Totalmente trouxa por, ainda assim, me questionar o porque de ele não ter ligado. E absolutamente Trouxa por sentir frios no estômago quando o celular toca. Trouxa, e Trouxa tamanho família, embrulhada em papel de presente, e para viagem!

Sou tão Trouxa, mas tão Trouxa, que mesmo sabendo que me livrei de uma boa, ou como diria meu pai, de um merdinha hiperproteico e hipocefálico, ainda assim fico sonhando com a próxima vez em que faremos sexo. Trouxa por acreditar que ele vai ligar no dia seguinte, mesmo sabendo que não vai. Por crer piamente que daqui para frente tudo vai ser diferente, mesmo tendo acreditado no mesmo, em todas as outras sempre iguais vezes... Ouxa, ouxa, ouxa, eu sou mesmo muito Trouxa.

No mundo de hoje, Deus salve as crianças, os loucos e os Trouxas. Ser Trouxa, hoje em dia, é quase uma habilidade especial. Como diria minha analista, ser Trouxa é ter esperança. A minha analista, talvez a mais Trouxa de todas, ainda acredita em mim. E eu, apenas aprendiz de Trouxa, acredito na recuperação de canalhas aborígenes, mas não na minha própria, o que mais uma vez mostra o tamanho da minha Trouxisse – ou Trouxidão?

Às vezes penso que seria mais fácil me fechar ao mundo, me tornar uma lagarta no casulo, procurando não sofrer mais por possuir esta essência Trouxa. Mas algo ainda me faz acreditar que tudo isto um dia acabe valendo à pena. Um dia em que eu finalmente me assuma e possa bradar a plenos pulmões, como a criança Trouxa que certamente fui um dia: “Sou Trouxa mas sou feliz, e mais Trouxa é quem me diz!”.
Março de 2005.