sexta-feira, 4 de abril de 2008

Alta

Todos os que convivem minimamente comigo sabem da importãncia crucial que a análise sempre teve na minha vida. E lá se vão 9 anos, comparecendo semanalmente às minha sessões de terapia, em um consultório fofo na arborizada Vila Madalena. Fofo mesmo. O consultório é todo decoradinho, fresco e iluminado. Plantas e flores por todos os lados. O chazinho de erva-cidreira que a Mira, a faxineira, sempre deixa á minha espera. Eu costumo chegar sempre alguns minutinhos antes do horário, para fumar um cigarro tranquilamente sentada no banco do lado de fora, cinzeiro no colo, pensamentos a desfilar pela minha mente, brigando entre si pelo posto do primeiro a ser verbalizado naquele dia.

Nem sempre a análise é um mar de rosas. Muito pelo contrário, consigo puxar da memória sessões terríveis, em que me deparei com meu lado mais sombrio e doente. Não ouso entrar no amago da questão de porque é que comecei, afinal, a fazer análise, mas afirmo do alto de minhas tamancas que naquela sala, sentada naquela poltrona marrom de couro, vivi os piores momentos da minha vida. Mas também os melhores. Momentos nos quais eu realmente tomava contato comigo mesma, momentos em que eu saía me sentindo revigorada e reencorajada para o mais difícil do viver: aprender.

E como aprendi sobre mim mesma!!! Aprendi a ser imperfeita, aprendi a conviver com os meus fantasmas, aprendi a aceitar, muitas vezes, o inaceitável. Aprendi que, por mais que eu tenha errado na minha vida, todos os meus erros foram decorrentes de tentativas de acertar e, assim, aprendi a me perdoar. A perdoar a mim mesma e aos outros, que em sua imperfeição, também sempre tentam acertar.

Tem vezes, na terapia, que você sente que está estagnado. Que já faz um tempão que você deu seu último importante passo, que poderia caminhar mais mas que está estacionado. Eu tive esses meus momentos, mas sempre com a certeza e a confiança de que este momento, como tantos outros, também passaria, e que mais cedo ou mais tarde, eu retomaria meu caminho rumo a mim mesma. Nestes momentos eu sempre pensava em como seria parar de fazer análise. E eu sempre me desesperava diante desta possibilidade; não, eu continuaria em terapia para sempre, até um dia em que eu me tornaria perfeita e, aí sim, receberia alta.

Quando eu recebesse alta, eu seria uma pessoa serena, calma, controlada e tranquila. Não me desesperaria diante de besteiras; não estranharia mais meus pensamentos, pois eu me conheceria tanto que nada em mim seria digno de surpresa; não teria mais inveja ou qualquer outro tipo de sentimento negativo pelas pessoas; não teria mais medo de amar ou de me entregar ou de me doar; seria, como eu mesma o disse tantas vezes, uma panela com tampa. Me bastaria e não precisaria de mais ninguém para me sentir completa.

Pois duas semanas atrás, eu fui para a terapia. E comentei com a minha ilustríssima analista que eu sentia que talvez precisasse de um tempo sozinha, sem terapia e nem terapeuta, somente eu mesma e minhas possibilidades e capacidades pessoais. Eu disse isso realmente acreditando no que dizia, mas no fundo no fundo imaginava que ela iria me negar esta possibilidade; que iria me dizer que eu estava em um momento complicado da minha vida, e que este meu desejo de “dar um tempo” seria provavelmente oriundo de resistência. Que eu não tinha condições ainda de caminhar sozinha, e que inclusive ela vinha pensando seriamente em aumentar as minhas sessões para duas vezes por semana.

Mas ela concordou comigo. E me disse que achava que 9 anos era realmente muito tempo, que estava mais do que na hora de caminhar sozinha e que, neste tempo todo, realmente havíamos chegado ao cerne da questão e que, por hora, não havia mais o que ser trabalhado. Disse-me que pensava, talvez, que eu devesse pensar em um outro tipo de terapia. Talvez em procurar um analista homem, ou fazer terapia em grupo. Mas que até mesmo estas possibilidades eram para o futuro, e que ela achava que eu estava pronta para obter alta.

Até agora não sei o que senti naquele momento. Por um lado, alegria imensa. Alegria por estar sendo intitulada capaz de cuidar de mim mesma. Alegria por ouvir, do meu “sujeito suposto saber”, que eu estava apta a interromper o processo. Alegria por ter sido “aprovada” sã, oficialmente sã, documentadamente sã. Mas por outro lado, o medo também foi enorme. O medo pela responsabilidade enorme de ser capaz de me virar sozinha.

Mas o medo é menor do que a alegria. É estranho, realmente, sentir-me “normal”; eu nunca me senti assim. Antes da terapia eu era a doida que precisava fazer terapia, e durante o meu processo de análise eu era a doida que precisava continuar fazendo terapia. Agora sou a doida recuperada, que consegue se virar bem sem terapia. E lá vamos nós.

Engraçado é você ser a doida, este último tipo de doida, a recuperada, tendo plena consciência de que não é nem o ser mais calmo e nem o mais controlado do universo. Engraçado pensar que o máximo que poderia ter sido trabalhado o foi, e que nestes 9 longos anos eu caminhei para chegar exatamente onde estou agora. Apta a me virar sozinha. Mas apesar de ser tudo muito diferente do que eu imaginei para a minha “alta”, não posso dizer que esteja ruim. Muito pelo contrário, estou muito bem. Até as minhas nóias, coisa que eu sempre imaginei que fosse pensamento de gente doida, agora me parecem coisas de gente doida recuperada, e tenho me sentido mais normalzinha. Os desafios, que tanto me assustavam antes, agora me parecem ser desafios feitos sob medida para as minhas possibilidades e capacidades de doida recuperada. As frustrações, que antes tanto me agrediam, hoje me soam aos ouvidos como inevitabilidades da vida – afinal, imaginar que algum dia eu receberia alta me sentindo ainda tão imperfeita, seria algo extremamente frustrante.

Sei que ainda tenho muito o que caminhar. Sim, pois apesar de abrir mão da perfeição, não o abri de evoluir, de crescer, de me melhorar. A serenidade e a tranquilidade ainda são estados que almejo alcançar. Mas até para isso me sinto mais tranquila. Tranquila até pelo fato de que sei que a minha ilustríssima continuará lá caso eu tenha uma recaída e precise de uma lanterna em meio à escuridão.

Mas sabem... Meus olhos estão se habituando bem à esta pseudo-luminosidade...
Maio de 2005

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