sexta-feira, 4 de abril de 2008

Honestidade


Muito ouve-se falar sobre honestidade. Que a sinceridade é a melhor virtude, que nada pode ser melhor do que estar em um relacionamento aberto e com espaço para o diálogo, e bla-bla-bla. Obviamente ninguém quer se sentir enganado, feito de bobo ou coisa do gênero. Mas será mesmo que a honestidade é sempre a melhor escolha? Será que em um relacionamento, que envolve tanto de tática e política, as pessoas sempre devem saber da verdade, custe o que custar? Ou em alguns momentos, quando sentimentos, valores e emoções tão delicadas estão em jogo, o melhor a se fazer não é apenas ser honesto consigo mesmo?

Eu sempre fui destas sonhadoras que acreditam que a sinceridade é a melhor pedida. Sempre achei que, houvesse o que houvesse, deveríamos saber da verdade. No meu último relacionamento, eu e meu ex fizemos um pacto de sinceridade: diríamos sempre a verdade, por pior que ela pudesse ser. Eu teria que passar o próximo mês fora, a trabalho, e combinamos que, caso algo de “inusitado” ocorresse, contaríamos tudo, tim tim por tim tim. Mas nem tudo ocorre como o planejado, e depois de algumas decepções diante de certas atitudes do meu namorado e de alguns emails confusos trocados, traí meu namorado com um colega de trabalho.

A coisa não passou de uns beijinhos de boa noite, mas no dia seguinte, quando acordei, percebi que não me sentia bem com o que tinha acontecido. Não por ter traído a confiança do moço, mas por ter traído a mim mesma e ao sentimento intenso que eu tinha. Apesar de decepcionada, ainda acreditava que as coisas pudessem dar certo. E depois de uma conversa franca e honesta com meu amigo, as coisas foram colocadas em pratos limpos e nosso laço de amizade intensificou-se ainda mais.

Mas quando voltei da viagem e reencontrei meu namorado, percebi que as coisas não estavam iguais. No início pensei que eu estivesse “over-reacting”, motivada pela consciencia de que eu não havia feito por valer nosso pacto de sinceridade. Mas depois de três finais de semana seguidos separados, impossibilitados de nos vermos em função da agenda repentinamente lotada do namorado – que passou a trabalhar aos sábados e jogar futebol aos domingos – percebi que a vaca tinha ido para o brejo. Depois de uma conversa doída, ele admitiu que não estava tão envolvido no relacionamento quanto eu e decidimos por terminar o namoro. E qual não foi o meu espanto quando, dois dias depois, ele veio de surpresa à minha casa e admitiu que havia me traído também, por duas vezes, enquanto eu viajava a trabalho. Duas vezes, e com a mesma mulher.

Há uma coisa curiosa em relação à honestidade, é esta coisa é o que motiva a honestidade. Uma questão filosófica: uma árvore de uma tonelada que cai em meio á uma floresta sem que haja alguém por perto que ouça o barulho. Fez barulho ao cair? No meu caso, a resposta era não. Mas no caso do namorado, o barulho parecia ter sido tão grande que, depois de um mês que eu voltara de viagem, ainda ressoava em seus ouvidos. E o que me deixou profundamente pensativa foi o comentário que ele fez depois que me contou a verdade: que sentia-se tão culpado por ter feito o que fez que não conseguia me tratar da mesma forma. Quando é que a honestidade para com o outro ultrapassa o limite da sinceridade altruísta, caindo no lugar comum da confissão? Qual é o verdadeiro valor da honestidade motivada pelo sentimento de culpa?

A culpa é um sentimento horrível, pois está intimamente associado ao conceito de punição. Quando somos crianças e fazemos algo de errado, nossos pais fazem com que “paguemos” pelo nosso erro, tirando-nos privilégios ou dando-nos belos tapas na bunda. Com o tempo, aprendemos que determinada coisa é errada pois virá acompanhada da punição, e a partir deste momento, quando cometemos conscientemente um erro, sentimo-nos culpados. Desta forma, a culpa nada mais é do que o sentimento que nos assola entre o erro cometido e a punição merecida. Mas a filosofia ocidental-cristã prega que, caso confessemos nossos erros, seremos absolvidos pelo mesmo, como um prêmio recebido pela coragem de admitirmos nossas falhas. E aparentemente, foi isso o que o namorado pretendia, ao admitir sua traição.

Naquele momento ele foi o menino pecador assustado e eu, seu padre confessionário, que o faria sentir-se péssimo pela sua falta de consideração e que, no momento seguinte, o perdoaria. Algo como, “ajoelhe-se no milho e reze vinte aves-maria e doze pais-nosso”. Mas eu o surpreendi, dizendo que eu também havia sido infiel a ele. Mas que, em momento algum, havia traído a mim mesma. Contei o que tinha acontecido entre mim e meu colega de trabalho, e a reação do moço foi a de indignação. Ele não conseguia entender como eu havia feito o que havia feito sem me sentir culpada. Teria sido engraçada, se não fosse trágica, a expressão do moço diante da minha honestidade. Raiva, rancor, indignação e inconformismo eram os sentimentos que o dominavam quando ele me disse que preferiria não saber da verdade. E quando eu perguntei o porque de ele pensar assim cinco minutos depois de ter sido honesto, ele me respondeu que me disse pois se sentia culpado, e que se eu não me sentia assim não deveria ter contado nada. Bingo, ganhei um frango.

A pior desonestidade que pode existir é a desonestidade consigo mesmo. Uma parábola budista conta que um mestre e seu discípulo peregrinavam quando encontraram uma mulher na beira de um rio. Quando se aproximaram, a mulher lhes disse que precisava atravessar o rio para comprar mantimentos, mas que não sabia nadar. O mestre prontamente ajoelhou-se no chão, oferecendo os ombros para que a mulher se sentasse neles e ele a carregasse até a outra margem, e assim ela o fez. Cruzaram o rio, a mulher agradeceu e foi-se embora. Mas o discípulo não conseguia compreender a atitude do mestre; como é que ele, um sábio que vivia em celibato, havia oferecido os ombros para que neles a mulher se empoleirasse? Depois de meses atormentado pela questão, ele interpelou o mestre, e depois de expor o motivo de seu anseio ele lhe respondeu: “Pois é esta a diferença entre o mestre e o discípulo: enquanto um carrega a mulher nas costas de uma margem a outra do rio, o outro a carrega nas costas por meses a fio”.

E esta foi a diferença entre meu ex-namorado e eu: o grau de maturidade envolvido na intenção de ser honesto. Enquanto eu carreguei meu deslize nas costas de uma margem do rio e outra, ele carregou o seu por meses a fio, e apenas o abandonou no momento em que confessou-me seus pecados, esperando pela minha absolvição. Mas ela nunca veio. O namorado virou ex, o amigo continuou sendo amigo e eu demorei certo tempo para recuperar a minha auto-estima. Mas no final de tudo, convenci-me de que o maior triunfo de uma pessoa é a honestidade para consigo mesma, antes de ser para com o outro. O que, antes de qualquer outra coisa, é a prova mais concreta da maturidade pessoal de um individuo que se aceita e se respeita.
Novembro de 2005

Nenhum comentário: